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Aurélio Fernández Miguel

Aurélio Fernández Miguel

modalidade

Judô

data e local de nascimento

10/03/1964

São Paulo

BIOGRAFIA

Sinônimo de judô no Brasil, o paulistano Aurélio Fernandez Miguel começou a lutar aos 7 anos, foi colecionando vitórias e medalhas até ser reconhecido como o melhor judoca dos Estado de São Paulo, aos 13. Antes de chegar aos 20 anos, já demonstrava confiança e provocava até risadas ao falar que seria campeão olímpico.

“No final do Campeonato Pan-americano de 1983, o Aurélio, com 19 anos, mas já competindo pelo adulto, saiu para comer com outros atletas e, no meio da conversa, afirmou para todo mundo que iria ser campeão olímpico. Todos na mesa deram risada”, conta Rogério Sampaio, diretor geral do COB e campeão olímpico em Barcelona 1992. 
“Naquela época, o único medalhista olímpico do judô brasileiro era o Chiaki Ishii, bronze em Munique 1972. E o Ishii é um japonês naturalizado brasileiro. Era impensável, em 1983, aqui no Brasil, alguém cogitar conquistar uma medalha no judô, quanto mais ser campeão olímpico” completa o ex-atleta, um dos grandes amigos de Aurélio.  

Um ano antes, Miguel conquistara seu primeiro grande resultado internacional: vice-campeão no Mundial Universitário, na Finlândia. “Foi lá que eu percebi que o negócio era diferente no exterior, mas que eles não eram muito diferentes de nós, não. Eu vi que era possível, que o pessoal não era de Marte. Eram terráqueos”, brinca Aurélio em entrevista exclusiva ao Hall da Fama do COB.

O judoca estava no caminho certo - treinando, competindo e vencendo -, mas, para realizar seu sonho do pódio olímpico, queria conquistar, de forma justa, uma vaga na equipe nacional. 



“A gente sempre brigou para que as vagas fossem definidas por seletivas. Havia os confrontos, só que os dirigentes nem sempre seguiam o resultado. Eles escolhiam no papel!”, lembra o campeão olímpico de Seul 1988, referindo-se à gestão de Joaquim Mamede na presidência da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). As dificuldades começaram a surgir. 

Injustiça com o adversário da categoria

Na seletiva de 1982, Aurélio era o judoca mais jovem da categoria meio-pesado, com 18 anos. Para garantir sua vaga, era necessário vencer Douglas Vieira, por wazari, mas perdeu a luta por ippon.

“O Douglas venceu, porém, em outubro daquele ano, inventaram uma indisciplina dele, do (Walter) Carmona e do (Luiz) Shinohara. Eles chegaram atrasados ao treino e foram cortados”, detalha. 

Primeiro reserva da vaga, Aurélio foi convocado para substituir Douglas Vieira no Campeonato Pan-americano da modalidade. Mesmo sendo beneficiado, ele não concordou com a decisão. Foi conversar com os atletas cortados e com os dirigentes, expressando a sua opinião: “Está errado isso aí. Eu não vou aceitar essa convocação!” 

Os dirigentes não deram ouvidos. Aurélio ainda não tinha a força que teria nas brigas futuras e teve de ceder. Competiu e sagrou-se campeão pan-americano pela primeira vez. Logo em seguida, ele foi convocado para a Copa Jigoro Kano, no Japão.

“Foi a primeira vez que eu fui ao Japão. Foi lá que eu descobri que o pessoal não era tudo isso que a gente imaginava, né?”, revela.

Ficou um mês treinando no Japão e na volta disputou os Jogos Pan-americano Caracas 1983, terminando com a medalha de prata, ao perder para um cubano na final.

Pódio no Mundial Júnior

Titular da seleção adulta, Aurélio Miguel experimentou a sensação de estar no topo do mundo pela primeira vez ao sagrar-se campeão mundial júnior, em Porto Rico. A falta de estrutura da organização, porém, quase o fez não subir ao pódio, em sinal de protesto.

“No início do campeonato, eles não tinham a bandeira do Brasil. Depois conseguiram. Na hora de subir no pódio, me chamaram e disseram que não tinham o hino nacional do Brasil e que iriam tocar o hino olímpico. Eu disse que não subiria ao pódio, pedi a medalha porque iria embora. Diante da minha posição, pediram um tempo e sugeriram que os colegas da equipe brasileira cantassem o hino ao microfone, ao lado do pódio. Foi a forma de eu aceitar. Eles cantaram e eu subi no pódio”, diverte-se ao lembrar.

Judô como terapia

Aurélio Fernandez Miguel começou a praticar judô por indicação médica, aos quatro anos e meio. Ele tinha problemas respiratórios e foi para o dojô do São Paulo Futebol Clube, com o irmão Carlos e as irmãs Cristina e Suzana. 

“No começo eu só queria treinar com a Suzana, que é um ano mais velha que eu. Na verdade, nós fomos parar no judô pelo benefício que ia dar para a nossa saúde. Eu comecei no judô e natação, lá no São Paulo”, explica Aurélio. “Eu não gostava de competição, só fui gostar depois com o tempo. E gostei muito. Fiquei competitivo em tudo o que eu faço. Sou muito competitivo”, admite.

Logo, o pai notou que só havia meninos no judô e transferiu as meninas para o balé. Competitivo como o filho, o catalão Aurélio Miguel Marin, que havia praticado boxe na Espanha, observou anos depois que os meninos que treinavam na Associação de Judô Vila Sônia eram mais preparados para as competições e tratou de levar os filhos para treinar lá com o sensei Massao Shinohara.

“Meu pai lutou a Guerra Civil Espanhola, naquela época era difícil. Ele veio da Espanha para o Brasil em busca de um futuro melhor, trabalhou a vida inteira. Ele colocava todos os filhos, a partir dos seis anos, para fazerem exercício isométrico de força, numas barrinhas de ferro que ele mesmo tinha feito, e pular corda, todos os dias. A gente também treinava com um saco de boxe”, conta Aurélio, cujo pai era dono de uma metalúrgica.
A mãe, Maria Catalina, a dona Cátia, também era catalã e, além de cuidar da casa e dos filhos, ajudava nos negócios do marido.  

Críticas 

Durante uma mesa redonda com atletas sobre os Jogos Olímpicos Los Angeles 1984, na TV, Aurélio foi questionado sobre a preparação da seleção brasileira de judô e decidiu falar o que pensava.

“Falei que achava que tinha de ter seletiva, que, da forma que era feito, parecia que a gente estava lá de favor, porque era amigo do rei, e que isso enfraquecia os treinamentos. Já estávamos reparando que não ia ninguém nos treinamentos, o treino ficava vazio. Se houvesse seletiva, todo mundo teria esperança de que, se vencesse, iria garantir sua vaga e isso seria melhor para todo mundo. No dia seguinte, já queriam me cortar”, revolta-se. 

No mesmo ano em que se sagrou campeão no júnior, Aurélio Miguel tinha a possibilidade de brigar pelo título entre os adultos. Um “pequeno detalhe” impediu a luta pelo sonho.

“Uma semana antes de embarcar para a Europa, a gente já estava com passagem e tudo, mas a Confederação não tinha se lembrado de que para entrar na União Soviética precisava de visto. Nós ficamos fora do Campeonato Mundial por conta disso”, relembra.  

Desrespeito e corte

Como os atletas já estavam pressionando para fazer um estágio no Japão antes dos Jogos Olímpicos –tudo pago com recursos dos judocas-, a Confederação Brasileira de Judô (CBJ) aceitou a proposta, segundo Aurélio, para consertar o erro que impediu a participação no Mundial. O clima já estava tenso por conta das declarações sobre a necessidade de seletivas e piorou no Japão. Aurélio conta que o presidente Joaquim Mamede foi desrespeitoso com ele durante uma discussão, e o atleta acabou cortado. Com isso, Aurélio perdeu a chance de disputar sua primeira edição de Jogos Olímpicos, em Los Angeles 1984.

“Ele foi mal educado e falou que eu nunca mais viajaria. Respondi que eu não precisava disso para viajar, que estava ali pelo meu ideal, pelo meu sonho de conquistas dentro do judô. Acabou que deu confusão e fui cortado. Foi isso”, conta Miguel.

Resiliência

“Em 1983, um ano antes dos Jogos de Los Angeles, Aurélio sofreu injustamente um dos maiores golpes de sua carreira na era Mamede, que o impediu de treinar e competir pela seleção. Diante disso, ele me procurou e decidimos que ele teria que ir treinar no Japão, já que o impediram de treinar no Brasil”, conta o técnico olímpico Luiz Shinohara, filho do sensei Massao Shinohara e um dos professores do campeão. 

Fora da equipe nacional, Aurélio foi convidado para disputar uma Copa Universitária, no Japão. Determinado, disse que só aceitaria se ficasse na Universidade de Tokai, em Kanagawa, onde treinava Yashuhiro Yamashita, futuro campeão olímpico em Los Angeles 1984 e quatro vezes campeão mundial, um dos grandes destaques do judô na época. 



“Eles toparam. É o que eu sempre falo: toda vez que se fecha uma porta, abrem-se duas, mas a pessoa fica olhando a porta que não abriu. Eu não! Como eu já tinha sido cortado e estava fora dos Jogos, paciência! Decidi que iria melhorar, aprimorar meu judô”, lembra o campeão olímpico.

Além do aperfeiçoamento técnico, o treinamento no Japão rendeu a Aurélio uma informação preciosa: os atletas comentavam sobre as várias competições na Europa, da qual os brasileiros nunca tiveram conhecimento. Com o visto de turista prestes a vencer, ele pediu conselho para seus professores no Brasil e, em vez de ir para a Coreia do Sul para renovar o visto e voltar ao Japão, decidiu enviar mensagens para os organizadores dos torneios da Europa, solicitando participação. 

“Eu já tinha sido campeão mundial júnior, campeão pan-americano e só treinar para mim não era o suficiente, não me dava brilho nos olhos. Nós mentimos um pouco, porque eu estava fora da seleção. Como o Brasil desconhecia essas competições, a Confederação não tinha como proibir a minha participação. Não sabiam nem que havia essas competições. Mandamos um telegrama dizendo que eu era o atual campeão continental americano, campeão mundial júnior e estava me preparando para os Jogos Olímpicos de Los Angeles. Nem tudo era verdade, né? Mandamos para todos os lugares que a gente descobriu que tinha as competições, para fazer uma sequência e poder escolher”, recorda.

Descobrindo o Circuito Europeu

A Hungria foi a primeira a confirmar a participação do brasileiro. Todos os outros torneios aceitaram sua participação.

“O interessante é que, em todos os países, após a competição, tinha um treinamento de campo”, admira-se. “Os alemães orientais não me deixaram entrar porque eu precisava da carta da Confederação. Mostrei a carteirinha, mas eles falaram que não servia, que precisaria uma autorização da CBJ. Atravessei o muro da vergonha que ainda dividia a Alemanha em duas e fui para Berlim Ocidental e, de lá, para Colônia"". 

Em sua primeira participação no “Circuito Europeu” – nome dado pelos brasileiros – Miguel colecionou medalhas. 

“O Aurélio foi quem quebrou o tabu dos intercâmbios. Nós não conhecíamos os atletas dos outros países e, sem esse contato com o judô mundial, não conseguiríamos evoluir nos resultados internacionais”, argumenta Walter Carmona, bronze em Los Angeles 1984 e grande ídolo de Aurélio Miguel.
O brasileiro ficou quase quatro meses em Colônia, onde conheceu o Doutor Henrique de Rose e, pela primeira vez, fez testes de condicionamento, lactato, esteira e VO2. 

Fim do sonho olímpico em 1984

De volta ao Brasil depois de seis meses de treinamentos e competições no Japão e na Europa, Aurélio viu a possibilidade de conquistar uma vaga para Los Angeles na categoria absoluto. Ganhou a seletiva, mas não foi. 

“Ele (Mamede) disse que não tinha vaga na Vila Olímpica. Eu falei que não tinha problema, que eu pagaria a minha hospedagem num hotel e todas as despesas. A resposta foi: não pode, não vai! Eu poderia até ter conquistado a medalha no absoluto e perdi a chance. Eu fiquei fora de Los Angeles”, lamenta Aurélio.

Douglas Vieira, o representante da categoria meio-pesado, ficou com a medalha de prata. Luis Onmura e Walter Carmona trouxeram o bronze. No mesmo ano, Aurélio sagrou-se campeão mundial universitário, em Strasburgo, na França. 

Pressão e más condições de treinamento

Depois de se submeter a uma cirurgia no ombro, em 1986, e conquistar a medalha de bronze no Campeonato Mundial da Alemanha, em 1987, o meio-pesado parecia garantido na equipe que disputaria a Jogos Olímpicos de Seul. A caminho do sonho, ele sagrou-se campeão na Copa Pan-americana e nos Jogos Pan-americanos Indianápolis. Bem preparado e com o ritmo necessário conquistado nos torneios internacionais, Aurélio Miguel quase sucumbiu à pressão psicológica a que era submetido na fase de preparação para os Jogos Olímpicos de 1988.

O campeão olímpico conta que, durante o mês e meio que permaneceram no Centro de Treinamento de Santa Cruz, o peso ligeiro Sérgio Pessoa foi acometido por uma pneumonia por causa das condições precárias de alojamento. Pessoa prefere se lembrar de uma passagem engraçada.

“Numa das vezes que o Aurélio foi cortado, eu estava em Santa Cruz, e nós fomos proibidos de falar com ele. Um dia, dei uma fugida e liguei para a casa dele de um orelhão próximo do Centro de Treinamento. Acontece que, quando conversávamos, a reportagem do Globo Esporte estava na casa dele e gravou meu apoio. A matéria foi ao ar na hora do almoço, quando estávamos todos no refeitório do Centro. Houve um silêncio geral, seguido de risadas, quando apareceu a minha conversa com o Aurélio no ar. Quase fui cortado também”, conta Pessoa, rindo. 

Conselhos de pai e de sensei 

“Ele (Mamede) sempre falava que ia me cortar. Chegou nas duas últimas semanas, eu voltei até para casa e falei para o meu pai que eu não aguentava mais, que eu iria pedir dispensa. Ele disse para eu ter calma, me lembrando que o Mamede não estaria em Seul e que eu teria a chance de lutar pelo meu sonho: 'Vai lá, você já está pertinho”.

 O sensei Shimohara lembrou a Aurélio que às vezes a gente dá cinco passos para trás para andar seis para frente. Então, cede para poder vencer, não é assim que aprende no judô tem que ceder para vencer?”, repete.  

Aurélio ouviu os conselhos, se segurou e resistiu até Seul. Mamede não embarcou com a delegação, como previsto, e Sérgio Bahi, outro dirigente da CBJ se juntou ao grupo.

Enfim, os Jogos Olímpicos

Aurélio desembarcou e permaneceu na Vila Olímpica de Seul, em 1988, totalmente focado em seu objetivo. Não houve espaço para grandes emoções, comemoração ou deslumbramento.

 “Eu já tinha a experiência de dois Jogos Pan-americanos e uma Universíade, que disputei no Japão, mas Jogos Olímpicos era a primeira. A Vila Olímpica, os atletas das diversas modalidades, toda aquela estrutura. Eu percebi que se você não se policiar, acaba perdendo o foco. Como meu objetivo era trazer a medalha de ouro, falei para mim mesmo que iria ficar quietinho na Vila e treinar, me preparar, focar para o meu dia”, lembra.

Ele chegou à Coreia como um dos favoritos ao lugar mais alto do pódio. Dos sete torneios do circuito europeu que disputou, fez sete finais, conquistando cinco ouros e duas pratas. Havia sido campeão na Copa Pan-americana e nos Jogos Pan-americanos, além do bronze no Campeonato Mundial.

 “Eu era um dos cotados à medalha de ouro”, lembra. 

Clima olímpico impressionou

A primeira vez que Aurélio entrou no Jangchung Gymnasyum, em Seul, durante os Jogos foi no início das competições do judô, para torcer pelo seu grande amigo Sérgio Pessoa.

 “Foi quando vi o que era uma edição de Jogos Olímpicos. Estádio cheio porque era na Coreia e o então campeão olímpico no ligeiro era sul-coreano, o Kim (Jae Yup). Tinha umas 12 mil pessoas, muita gente, muito barulho. Eu nunca tinha visto tantas teleobjetivas na minha vida. Eu falei: 'Caramba, Jogos Olímpicos é isso?”, revive Aurélio.

O judoca ficou muito alterado e, embora tenha gostado do clima da arquibancada, concluiu que a experiência havia lhe feito mal e decidiu que iria torcer para os companheiros pela televisão. Aurélio conta que ficou na dele, concentrado, “fazendo os meus treinos de manhã e à tarde, uma sauninha, mas não ia lá assistir aos meus colegas competir. Até chegar no meu dia”.

Na véspera e no dia das suas lutas, Aurélio investiu na autoestima. 

“Em Seul a categoria meio-pesado foi a penúltima a lutar e, até então, não tínhamos obtido medalhas”, reforça o técnico Geraldo Bernardes. “Entrei no alojamento, ele estava deitado e, percebendo a minha presença, me chamou: ‘Gera, Gera, está chateado, né? Não se preocupe, amanhã vou botar o selinho no peito’. Aurélio tinha um condicionamento físico fora do normal, uma pegada muito forte, fazendo com que seus adversários ficassem em posição de serem punidos, além de uma agressividade que o tornava respeitado no judô mundial. Como convivi muitos anos com ele, passei a acreditar”, emenda. 

Para se distrair e driblar a ansiedade, à noite, o futuro campeão olímpico optou por jogar truco com Robson Caetano, Adauto Domingues e Zequinha Barbosa, todos do atletismo.  “Amanhã a periquita vai cantar”, repetia ele.

Em 30 de setembro de 1988, o atleta passou pela pesagem e estava confiante. 

“Hoje é o meu dia! Você vai ver. Nada vai tirar esse ouro do meu pescoço”, prometia Aurélio, distribuindo tapinhas. “Falei para o Geraldo: Hoje vai dar tudo certo, fica tranquilo! Eu me pesei, me deitei, descansei um pouquinho e fui para o ginásio. Chegando lá, deu aquele friozinho na barriga, claro. Ainda mais em esporte individual, não tem gripe, dor de cabeça, nada. Você tem que resolver”, destaca. 

“Isso aqui é Jogos Olímpicos!”

Aurélio relata que foi tomado por ansiedade e inquietação nos momentos que antecederam à sua primeira luta. Sentava-se, levantava-se, dava kiai (gritos que exteriorizam a energia corporal). 

“Eu estava com um friozinho na barriga porque queria lutar logo, não queria ficar lá esperando”, explica. “Será que eu treinei bem? Será que eu treinei o suficiente?”, questionava consigo mesmo, durante o aquecimento. 

A primeira luta foi contra o britânico Dennis Stewart, que ele já havia derrotado várias vezes, com facilidade. Foi uma luta dura, difícil, amarrada, decidida pelos árbitros a favor de Aurélio.

“Desse cara eu sempre ganhava bem, mas isso aqui é Jogos Olímpicos, o pessoal vem muito bem preparado”, raciocinou o futuro campeão olímpico. “Comecei a trabalhar a parte psicológica. Aquela história de ver o copo meio vazio ou o copo meio cheio. Era a minha estreia”, emenda.  

A segunda luta foi contra Bjarni Fridriksson, da Islândia, medalhista de bronze em Los Angeles 1984.  “Luta dura também, ganhei por decisão, de novo. Falei: Caramba! Desse jeito como é que eu chego lá?”

 Nas quartas-de-final, o italiano Juri Fazi levou várias punições, e Aurélio Miguel foi para a seminifinal contra o tcheco Jiri Sosna, o então campeão europeu.  “Eu já havia lutado com ele umas sete vezes e vencera todas, inclusive na Tchecoslováquia, com a torcida contra”, relata. O brasileiro venceu, mas a luta, também decidida na bandeira, não foi fácil. 

“Quando passei para final, veio todo mundo comemorar a vaga na final e a medalha de prata. Eu falei para botar todo mundo para fora, porque a medalha de prata para mim não serviria para nada: só vale o ouro para mim aqui. Tira todo mundo daqui e vamos continuar do jeito que nós estávamos, quietinho, concentrado e foi assim que nós fizemos”.

Sim, o ouro é possível

Aurélio entrou para o combate que valia a medalha de ouro contra o alemão Marc Meiling, com retrospecto favorável: cinco vitórias em seis lutas, sendo as duas últimas por ippon. A única derrota aconteceu quando Miguel se recuperava de uma cirurgia, em 1986, na Itália.

 “Os alemães me estudaram bastante. Eu era o cara a ser batido. A luta foi dura porque ele era muito alto”, analisa o brasileiro. “Ele veio com uma estratégia interessante, só que, antes de sair do Brasil, eu fiz os exames de condicionamento físico com o Dr. Victor Matsudo e ele me disse que eu estava com VO2 de corredor de fundo. Ele me garantiu que se eu cansasse, meu adversário estaria morto. Quando o alemão veio com um ritmo forte, eu me lembrei disso. Então, tá bom, vamos ver se o alemão vai ficar em pé”, narra.

Como previsto, o alemão cansou, Aurélio venceu na decisão e realizou o sonho de uma vida: finalmente, era campeão olímpico!

“Eu não imaginava que teria que fazer todas as lutas até o final, mas você tem que estar preparado, né? Quando eu tive certeza da vitória, foi uma felicidade muito grande. A primeira pessoa que pulou no tatamê e se jogou em cima de mim foi o falecido Ricardo Sampaio – irmão do campeão olímpico Rogério Sampaio. Depois vieram os colegas, os amigos todos. Aí sim, era a hora de fazer festa”, comemora. “O hino nacional tocou, a bandeira brasileira tremulando mais alto que as demais, a realização de toda uma carreira com muitos obstáculos. Um sonho postergado por quatro anos. Mas é o que eu falei. Tudo na vida vem por um motivo e eu só tenho a agradecer por ter tido essa conquista naquela ocasião”, acrescenta Aurélio, que dedicou a medalha à mãe, que já era falecida na data da conquista.  


O campeão olímpico de Seul 1988 exalta a importância da família, dos técnicos e dos colegas de treinamento e até dos oponentes para a conquista do ouro olímpico. “Na hora de competir, você precisa do adversário. Judô é diferente do atletismo, por exemplo, onde é possível bater o recorde mundial sozinho. Se não tiver o oponente, nem disputar você consegue, precisa ter bons companheiros para poder evoluir”, explica. 

Medalha muda o judô brasileiro

Se outros judocas foram importantes para a realização do seu sonho, Aurélio Miguel foi fundamental para fazer muitos acreditarem. 
“Ele foi o grande ídolo das gerações seguintes, servindo de inspiração para que outros atletas persistissem nos seus sonhos e alcançassem os objetivos de suas vidas.  E isso marca toda uma geração”, observa Walter Carmona. 
“Aurélio foi a única medalha de ouro nos Jogos de Seul. Ele levantou o nome do judô na mídia e a sua conquista deu uma confiança aos atletas brasileiros. Antes dela, nós sabíamos que tínhamos um bom judô, mas sempre achávamos que os outros países eram melhores. Depois do ouro, o atleta brasileiro começou a ter mais resultados”, destaca Sérgio Pessoa.

“Penso que muito das conquistas atuais se devem à evolução das organizações de treino, com metodologias tradicionais, mas também do conhecimento que obtivemos dos treinamentos com os países da Europa e Ásia. E quem abriu esta porta, com certeza, foi o Aurélio. Sua medalha de ouro olímpica contribuiu muito para toda esta visão de treinamentos e a importância desse contato com atletas de todo o mundo”, emenda Luiz Onmura.

“Ele foi um judoca que, com coragem, determinação e muita superação, quebrou todos os paradigmas, tornando-se o primeiro brasileiro a conquistar a medalha de ouro e mostrando ao mundo do que somos capazes”, sentencia o técnico Geraldo Bernardes.

Frustração e boicote

Aurélio Miguel fez da sua conquista olímpica um instrumento para difundir o judô no Brasil. Aceitou todos os convites e viajou pelo país divulgando sua arte marcial. O judoca ficou em evidência, gerando ciúmes no presidente da CBJ.

“Ninguém podia aparecer mais do que ele. Foi quando começaram as perseguições, aborrecimentos. Procurei evitar ter atrito, conflitos”, diz. 

Não adiantou. Visando à medalha de ouro no Campeonato Mundial de 1989, o campeão olímpico realizou duas temporadas de treinamentos no Japão. “Quando eu voltei, falaram que não sabiam se eu ia disputar o Mundial. Uma vergonha, né?”, desabafa. 

Num protesto contra a falta de seletiva, as condições precárias de preparação e aos desmandos de Joaquim Mamede, todos judocas da seleção deram início a um movimento que tinha como principal ação o boicote às competições oficiais. Todos os atletas se desligaram da CBJ e o Brasil não foi disputar o Campeonato Mundial, em 1989.

“Nós queríamos mudanças! Denunciamos tudo o que estava errado, fizemos um dossiê para a Polícia Federal, no Ministério da Educação (na época, o esporte era ligado ao Ministério da Educação). Houve intervenção federal na Confederação, só que eles conseguiram uma liminar e retomaram. O Mamede pai ficou inelegível, mas colocou o filho. Nós ficamos afastados das competições até 1992”, recorda Aurélio.

Seletivas e respeito

Os judocas Sérgio Pessoa, Rogério Sampaio, João Briganti, Ezequiel Paraguassu, Wagner Castropil e Frederico Flexa, além de outros que não eram da equipe, faziam parte do movimento encabeçado por Aurélio. Alguns voltaram às competições antes, mas a maioria resistiu, bravamente, até o fim.

“A gente passou a ser cobrado por melhores resultados. Éramos cobrados em condições de igualdade aos melhores países do mundo, mas, em termos de estrutura, não havia nada. Na minha carreira inteira, foram poucas as vezes em que teve médico na delegação. Fisioterapeuta, jamais. Nunca foi disponibilizado para mim um preparador físico, uma nutricionista. Era uma situação muito difícil”, constata o campeão olímpico Rogério Sampaio, um dos amigos-irmãos de Aurélio. “A gente treinava em tatame de palha e competia no exterior em tatame sintético. Cada um tinha que buscar os recursos para as viagens com sua família ou seu clube. Chegamos num ponto de estresse extremo. Na semana que antecedeu àquele Campeonato Mundial, a situação estava insustentável. Era choque diário, de hora em hora, com o presidente da Confederação Brasileira de Judô”, completa.

“A nossa força estava na união do grupo. O verdadeiro ensinamento do judô é chamado Vita Kyoei, pelo qual a prosperidade e benefícios mútuos estão acima dos individuais. Eram judocas lutando fora do tatame pelos princípios do judô, mais do que judocas lutando pelos seus interesses individuais. Aquele movimento expôs as irregularidades da CBJ, o que a tornou inadimplente com as contas da União. A partir daí, a entidade não pode mais receber recursos públicos e a força política da família Mamede diminuiu, tornando possível uma renovação com a entrada do Paulo Wanderley. Isso foi fundamental para uma melhor gestão e o crescimento do judô, além de um ambiente muito mais favorável às novas gerações de atletas”, conta o judoca olímpico Wagner Castropil, outro grande nome do movimento.

Incerteza para Barcelona 1992

Rogério Sampaio revela que o grupo avaliava que o movimento duraria um ou dois meses e tudo o que eles perderiam seria um Campeonato Mundial. Bem diferente disso, os judocas ficaram fora das grandes competições internacionais durante dois anos e meio. Nesse tempo, Aurélio cogitou disputar os Jogos Olímpicos de Barcelona defendendo a Espanha, enquanto Rogério, Briganti e Castropil tinham convites para lutar pela Bolívia. O impasse só se resolveu, seis meses antes dos Jogos, graças à intervenção do vice-campeão olímpico de vôlei Bernard Rajzman, à época Secretário Nacional de Esporte, que fez a intermediação entre os atletas e a CBJ e viabilizou o patrocínio de um banco estatal para a seleção brasileira de judô.  O acordo, que teve a participação do Comitê Olímpico do Brasil, previa a realização de seletivas, além da organização de questões administrativas, envolvendo viagens, hospedagem etc. 

“O Mamede primeiro queria que voltasse só eu. Eu falei que voltaria todo mundo ou não voltaria ninguém. A gente estava na luta por um ideal, queríamos melhorar nosso esporte. O Bernard foi ajustando o retorno, conseguindo dobrar o Mamede”, revela Miguel. 

Favorito contundido, franco atirador campeão

Porta-bandeira na Cerimônia de Abertura, Aurélio chegou a Barcelona como um dos grandes nomes da delegação brasileira e um dos favoritos à medalha por ter sido campeão em 1988. Depois de sentir o ombro esquerdo, na segunda luta, contra o tcheco, ele foi derrotado no terceiro combate, pelo húngaro Antal Kovacz, que ficou com ouro. Foi para a repescagem, mas não conseguiu se classificar. 

“Havia uma expectativa muito grande, pelo que ele representava em termos de esporte, mas nós sabíamos que existia uma dificuldade grande por falta de ritmo de competições internacionais. Fisicamente, ele estava bem, mas a questão de treinamento não foi suficiente para ele”, avalia o Professor Paulo Wanderley, que se tornou presidente do COB e era técnico da equipe brasileira de judô em Barcelona.

 “Eu acho que eu forcei a máquina mais do que podia. E eu estava bem, até porque eu fui para os campeonatos da Europa e ganhei tudo. Eu sou de treinar muito, então eu treinava mais do que podia”, confessa Miguel, que teve de se submeter a uma cirurgia logo após os Jogos.

A alegria do campeão ficou por conta da conquista de Rogério Sampaio, que se sagrou campeão olímpico entre os meio-leves. “Para nós, a medalha dele é nossa! Nós vibramos como se fosse nossa. Foi uma felicidade muito grande”, festeja Aurélio.

“O sentimento foi não de uma vitória minha, mas daquele grupo. Tudo aquilo que nós pleiteávamos como benefício e avanço estrutural se fortaleceu com aquela vitória. Foi inesquecível”, reforça Sampaio.

Mais uma vez no pódio

Recuperado da cirurgia, o grande nome do judô brasileiro disputou o Campeonato Mundial de Hamilton, no Canadá, em 1993, e ficou com a prata. Ele questionava se não seria a hora de parar, estava mais light nas competições e quase trouxe o único título que faltou na sua brilhante carreira. Nos dois anos seguintes, ficou meio parado e teve de perder 17 quilos para a seletiva dos Jogos Atlanta 1996.

Aurélio Miguel voltou dos Estados Unidos com a medalha de bronze no peito, tornando-se o primeiro judoca brasileiro a conquistar duas medalhas olímpicas. Sua influência foi fundamental na formação de novos campeões.

“Aurélio foi um atleta referência quando eu era criança, campeão olímpico e ídolo de uma geração. A influência dele aumentou na minha carreira e se tornou mais forte ainda na conquista da segunda medalha olímpica em Atlanta 1996. Foi naquela edição que eu decidi que tentaria o mesmo caminho. Ele impactou a vida de muitos atletas que, assim como eu, se tornaram olímpicos. Esse é o grande legado”, diz o campeão mundial Tiago Camilo, medalhista em Sydney 2000 e Pequim 2008.

Um líder com “três pulmões”

Embora sempre tenha se esmerado para alcançar a melhor condição técnica, parceiros e técnicos concordam que uma grande vantagem de Aurélio Miguel era seu condicionamento físico. 

“A gente fazia o treino, terminava o treino, ele recomeçava o dele. Às vezes até incomodava. Eu pensava: Impossível! Será que eu não dei treino suficiente? Ele quer treinar mais? Fisicamente, ele era um atleta ímpar. Todo mundo falava que o Aurélio tinha três pulmões, pois não era possível aguentar o que ele aguentava”, observa Paulo Wanderley. 

A liderança dentro e fora das áreas de competição é outra marca registrada do campeão. “Ele é um líder em constante aprendizado. Aliás, uma das grandes características do Aurélio é seu constante interesse e curiosidade por aprender e se desenvolver, inclusive na questão de liderança. O Aurélio é um exemplo a ser seguido pelos atletas mais novos. Uma referência no Brasil e no mundo, principalmente pelo seu foco, disciplina e princípios do judô”, opina Wagner Castropli.

 “Como atleta, a liderança do Aurélio começava dentro do dojô. Ele era o primeiro a chegar ao treino. Além de ser o cara que mais se dedicava, ele incendiava o treinamento. Quando acabava, se sentisse que o treino não havia exigido muito dele, ia lá e reclamava com o sensei. Ele chamava a atenção até do treinador. Todo mundo ia embora e ele continuava lá no tatame, fazendo trabalho de complemento técnico. Ele era o primeiro a chegar, o que mais se dedicava e o último a sair. A liderança dele começa por aí, nesse exemplo”, detalha Rogério Sampaio.

Mais medalhas

Um líder inspirador, bom de treino e bom de briga, Aurélio Miguel confessa que o título mundial fez falta. Competitivo ao extremo, ele revela que não só queria o bicampeonato olímpico, mas que gostaria de ter alcançado um número maior de medalhas em Jogos Olímpicos.

“Umas quatro, todas as que eu tive a oportunidade de disputar”. A conta inclui a de Los Angeles, onde foi impedido de ir, ou a de Sydney, para a qual suas condições físicas o barraram na seletiva. Uma frustração? 

“Gostaria de ter tido bons dirigentes na minha época. Essa é a minha frustração. Se tivesse tido um Paulo Wanderley, pessoas que realmente se preocupam com os atletas, se eu tivesse tido essa estrutura na minha época, talvez escrevesse uma história muito mais bonita”, projeta.

“O Aurélio foi um desbravador em todos os sentidos. Esse é o grande mérito dele. Por meio dos exemplos que dava, dos resultados que obtinha. O sucesso de um esporte está na medida em que você tem ídolos e ele, como ídolo, arrastou multidões. Os títulos que ele conquistou ninguém repetiu ainda. Ele é o ícone. Gostaria que ele tivesse sido técnico da Seleção Brasileira de Judô na época que eu estava dirigindo a Confederação. Com ele, eu tenho certeza de que a gente teria ainda mais sucesso”, diz Paulo Wanderley. 

Acreditar

Depois da aposentadoria, em 2001, Aurélio Miguel se dedicou à carreira política e de empresário no ramo da construção civil. Pai de um filho, uma filha e uma enteada, ele ainda treina e não perde a oportunidade de colaborar com a preparação da seleção. 



Antes de entrar para o Hall da Fama do COB, ele foi o primeiro brasileiro a fazer parte do Hall da Fama da FIJ (Federação Internacional de Judô). Um os maiores judocas de todos os tempos, Aurélio é definido pelos ex-companheiros como um amigo para todas as horas, um irmão. Dos muitos títulos que conquistou, dos muito amigos que fez, o que ele deseja que permaneça na memória do torcedor brasileiro é o seu lado desbravador. E quando, no futuro, perguntarem quem foi Aurélio Miguel, qual seria a melhor resposta?

“A pessoa que fez as outras sonharem e perderem o medo de serem campeões. A partir do momento em que eu conquistei uma medalha de ouro, qualquer um que veio atrás poderia também. É questão de dedicação, acreditar, fazer valer”, finaliza.
Aurélio Fernández Miguel

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Medalhas em jogos olímpicos

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Aurélio Miguel: Relembre a medalha de ouro em Seul 1988 e o bronze em Atlatnta 1996

Com ouro e bronze em Jogos Olímpicos, Aurélio é um dos maiores nomes da história do judô e teve participação fundamental para a modernização do esporte no Brasil

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Aurélio Miguel, primeiro campeão olímpico do judô brasileiro, é homenagedo pelo Hall da Fama

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Aurélio Miguel, Fofão e Servílio de Oliveira são eternizados no Hall da Fama do COB

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RESULTADO EM DESTAQUE

ediçãoresultadoprova
Jogos Olímpicos Seul 1988
1º LugarOuro
Meio-pesado - 95Kg
Jogos Olímpicos Atlanta 1996
3º LugarBronze
Meio-pesado - 95Kg
Jogos Pan-americanos Caracas 1983
2º LugarPrata
Meio-pesado - 95Kg
Jogos Pan-americanos Indianapólis 1987
1º LugarOuro
Meio-pesado - 95Kg
Campeonato Mundial - Hamilton 1993
2º LugarPrata
Meio-pesado - 95Kg
Campeonato Mundial - Paris 1997
2º LugarPrata
Meio-pesado - 95Kg
Campeonato Mundial - Essen 1987
3º LugarBronze
Meio-pesado - 95Kg

ACERVO

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