Joaquim Cruz sentiu uma onda de choque quando atravessou o túnel de acesso à pista de corrida do Los Angeles Memorial Coliseum naquele 6 de agosto de 1984, um ensolarada segunda-feira de um badaladíssimo verão californiano. Nas arquibancadas, dezenas de milhares de torcedores aguardavam ansiosos a final dos 800m dos Jogos Olímpicos, enquanto a muitos quilômetros dali, no Brasil, outras milhões de pessoas mantinham os olhos focados nos televisores e esperavam pelo o início da prova com enorme expectativa.
“Quando cheguei à pista de aquecimento do Coliseu e vi os atletas treinando, me deu aquele fluxo de adrenalina. Eu senti que algo maior do que a minha vida iria acontecer”, recorda Joaquim Cruz.
Com o número 093 na camisa e prestes a finalmente dar um fim a toda a tensão e ansiedade acumulados havia vários dias, Joaquim Cruz tinha apenas 21 anos, 4 meses e 25 dias quando partiu para a prova que o transformou em uma estrela das pistas.
Pouco depois daquele “fluxo de adrenalina” ter corrido por seu corpo, sua premonição se tornaria realidade e o resultado faria com que ele assumisse o posto de sucessor de Adhemar Ferreira da Silva, até então o único brasileiro a conquistar o ouro olímpico no atletismo, no salto triplo, em Helsinque 1952 e Melbourne 1956. A noite anterior à glória, contudo, não havia sido nada fácil para Joaquim. Antes de chegar ao olimpo naquela pista de corrida em Los Angeles ele teve de vencer obstáculos mentais que já haviam lhe tirado o sono em outras ocasiões.
Erro em Helsinque, acerto em LA
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Um ano antes dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, Joaquim Cruz experimentou uma angústia estranha na noite que antecedeu a final dos 800m no Campeonato Mundial de Helsinque. A maneira como lidou com seus sentimentos em seu quarto de hotel deixou lições que acabariam sendo muito mais valiosas do que o pódio conquistado na Finlândia. Esse aprendizado foi fundamental para o que Joaquim viveria 12 meses depois, na Califórnia.
“Em termos de preparação psicológica e emocional, eu cometi um erro grave em Helsinque, no meu primeiro Mundial”, lembra Joaquim. “Na noite anterior, eu não tinha descoberto ainda como relaxar antes da prova. Passei a noite competindo, correndo... Eu visualizei como iria correr a prova e fiquei trabalhando em cima daquilo a noite inteira. E imaginei só um jeito de correr: saindo na frente, ganhando a liderança e correndo sempre na frente”, recorda.
“Na final em Helsinque, eu saí na frente, mas na altura dos 300 metros o inglês Peter Elliot me roubou a liderança. Então, ele quebrou a minha concentração e a visualização que eu tinha feito da prova. Eu tive que correr uma volta na pista para ganhar a liderança novamente. A 100 metros antes da chegada, assumi a liderança, mas acabei chegando em terceiro. E esse era um erro que eu não iria cometer de novo nos Jogos Olímpicos em Los Angeles”, prossegue Joaquim, referindo-se ao fato de ter sido ultrapassado pelo alemão Willi Wülbeck, medalha de ouro, e pelo holandês Rob Druppers, que ficou com prata no Mundial de Helsinque.
Apesar disso, Joaquim não conseguia neutralizar a ansiedade que sentia na noite de 5 de agosto de 1984, quando se fechou em seu quarto na Vila Olímpica. Nos últimos meses, ele havia pensado em várias estratégias para lidar com suas emoções. E ali era a hora de descobrir se elas dariam certo.
“Durante o ano todo de 1984, antes de Los Angeles, eu tive que descobrir uma forma de relaxar e acalmar a mente. Durante as minhas competições universitárias, descobri uma forma. Eu simplesmente dava uma direção para ela. O que fiz especialmente naquela noite foi criar uma fantasia antes de dormir. Eu ficava trabalhando em cima daquilo antes de pegar no sono”, revela Joaquim.
Ao ser questionado sobre o que pensou naquela noite, Joaquim Cruz, após alguns segundos em silêncio, resolveu abrir o jogo. “1984 foi o ano em que conheci a Mary, minha esposa até hoje. Eu estava apaixonado. Nós nos conhecemos em janeiro de 1984, começamos a sair e, durante os Jogos, estávamos namorando. Eu pensava na Mary até pegar no sono. Acordava no meio da noite, voltava à Mary e pegava no sono novamente. E assim foram os quatro dias de competições durante a Olimpíada. Isso foi o que me ajudou a relaxar. Eu simplesmente dei direção à mente”, ensina.
Valeu, Wandeco! Valeu, Luis Alberto!
Carlos Wanderlei, o Wandeco, não é um campeão olímpico. Na verdade, nunca disputou Jogos Olímpicos, Campeonatos Mundiais ou qualquer evento de grande porte internacional. Mas o fato é que, por vias tortas, o atletismo brasileiro, em particular, e o esporte do país, em geral, deveriam agradecer ao Wandeco pelas intromissões que fez na vida de um amigo que se tornou um dos maiores atletas da história do Brasil.
Joaquim Carvalho Cruz nasceu em uma terça-feira, 12 de março de 1963, em Taguatinga, cidade distante pouco mais de 20 quilômetros de Brasília. A nova capital, um lugar poeirento na maioria das partes, ainda não tinha completado três anos de vida quando aquele menino franzino veio ao mundo, no meio do Cerrado.
“A minha jornada, supreendentemente, começou com uma decisão da minha mãe, dona Lídia. Foi ela quem teve o espírito de aventureira e guerreira e deu os primeiros passos quando decidiu subir num caminhão de pau de arara com 5 filhos pequenos para viajar 12 dias, de Corrente, no Piauí, para Brasília”, ressalta Joaquim.
“Ao longo do caminho, ela sonhou e orou por dias melhores para ela e para os filhos. Ao chegar a Brasília, ela se reencontrou com o meu pai e decidiram aumentar a família e eu nasci em Taguatinga. Cresci num ambiente humilde e livre para explorar o meu horizonte. O meu mundo natural foi a minha base para o esporte. Eu brinquei de tudo: joguei bola, cacei passarinho com estilingue, armei arapuca, soltei pipa e caminhei horas e horas para encontrar frutas silvestres no cerrado”, prossegue o campeão olímpico.
Como a maioria de seus colegas, Joaquim cresceu apaixonado por futebol. E, em seus primeiros anos, corria de um lado para o outro atrás da bola nas peladas em sua rua. Foi assim até por volta dos 13 anos, quando Wandeco apareceu com uma notícia que chamou a atenção de Joaquim.
“Eu vou jogar basquete”, disse o amigo, referindo-se ao time comandado pelo professor Luís Alberto, no Sesi de Taguatinga.
Só que Wandeco fez mais do que ir jogar basquete. Ele tratou de dar um jeito de levar Joaquim junto.
“Um dia, vi um grupinho de amigos conversando com o professor Luís”, recorda Joaquim. “Aproximei-me e permaneci calado, ouvindo a conversa. Luís virou-se para mim e perguntou: e esse magrelo aí? Antes que eu pudesse falar algo, o Wandeco disse que eu queria começar no basquete. Luís pediu para que eu aparecesse no Sesi de Taguatinga na segunda-feira para fazer um teste. Mesmo não concordando muito com o convite, decidi aparecer e iniciei os treinos de basquete. Mas minha boa atuação nas corridas de condicionamento começou a chamar a atenção”, narra Joaquim Cruz.
Foi então que um professor de educação física apareceu em Taguatinga. O objetivo dele era descobrir jovens que pudessem competir nos Jogos Estudantis do Distrito Federal. Joaquim Cruz, àquela altura, seguia com seus treinos no basquete, só que o Wandeco iria, mais uma vez, mudar os rumos esportivos do amigo.
“De novo, ele se intrometeu e indicou meu nome. O professor Luís Alberto concordou e fui obrigado a fazer treinamentos de atletismo antes do basquete. Detestei tudo aquilo, mas respeitava demais o professor para desobedecer”, diz Joaquim.
Perto do atletismo, o basquete era um paraíso. Então, para tentar fugir daquele esporte indesejado, Joaquim Cruz arquitetou um plano.
“Decidi desaparecer por alguns dias e esperar que o professor Luís Alberto esquecesse a ideia do atletismo. Após uma semana sumido, resolvi mostrar a cara. Entrei na biblioteca do Sesi e dei de cara com o professor Luís Alberto”, descreveu Joaquim.
Assim que avistou seu aluno, Luís Alberto não se segurou. “Se você fosse meu filho, moleque, entraria aqui apanhando”, vociferou. Os olhos de Joaquim Cruz devem ter se arregalado ao ouvir aquilo. Depois daquele episódio, seus treinos passaram a ser para valer, no atletismo e no basquete.
A intromissão de Wandeco e o pulso firme de Luís Alberto acabaram por mudar os rumos da vida de Joaquim Cruz. Não demorou muito para que o professor percebesse que o futuro de seu aluno não estava nas quadras de basquete, apesar de ele estar se destacando. Ele tratou de convencer Joaquim Cruz de que ele poderia ter sucesso no atletismo. Para isso, usou um argumento muito simples. O explicou que no basquete, para chegar à Seleção Brasileira, o menino teria que percorrer um caminho muito mais difícil e que teria que disputar uma vaga com garotos de todo o Brasil, mais altos e mais fortes.
No atletismo, contudo, a batalha de Joaquim Cruz seria outra: ele teria que superar limites pessoais. Seu crescimento, já que ele tinha um talento para a modalidade, dependeria de si mesmo, de sua dedicação e determinação. Joaquim Cruz e a bola laranja, apesar de ótimas atuações, disseram adeus um ao outro. Joaquim, Luís Alberto e Wandeco não sabiam, claro, mas naquele momento nascia um campeão olímpico.
“Nossa amizade sempre foi muito bacana. Nos conhecemos aos 7 anos e éramos bastante parecidos em termos de timidez. Éramos dois moleques muito tímidos, mas nos entendemos muito bem desde o início. Ríamos muito. Sempre tivemos essa capacidade de rir muito. Quando estamos juntos ou até quando nos falamos por telefone. Até hoje em dia nunca deixamos de rir muito. É uma amizade muito saudável, que nunca deixou de existir e só continuou crescendo”, conta Wandeco, que, assim como Joaquim vive há décadas nos Estados Unidos.
Muito além das pistas
Luís Alberto foi o primeiro e único técnico de Joaquim Cruz. Juntos, desenvolveram uma ligação fortíssima que fez com que Joaquim se tornasse não apenas uma estrela, mas ganhasse um segundo pai.
“Eu e o Luís Alberto formamos uma equipe de duas pessoas: treinador-mentor e atleta. Nós nos conhecemos quando eu tinha 12 anos. Sonhamos com algo maior do que nós mesmos e decidimos partir numa jornada de vida na busca pela excelência num mundo desconhecido. Longe de casa, fomos testados de várias as formas todos os dias. No final, conseguimos realizar os nossos sonhos e conquistar o nosso espaço no mundo. Tivemos uma carreira de 22 anos juntos e representamos o melhor do Brasil no mundo”, agradece Joaquim.
“Quando eu era garoto, sonhei um dia ser alguém na vida. Descobri o esporte e ele me descobriu. Foi o Luiz Alberto quem me disse que eu poderia sonhar um pouco mais longe, só que no atletismo, esporte que eu detestava. O basquete era a minha maior paixão e já havia recebido uma promessa de um norte americano de estudar e jogar basquete nos Estados Unidos. Mas, após muita insistência por parte do professor Luís Alberto, decidi navegar e me equilibrar na onda do atletismo. Logo de início, os desafios passaram a fazer parte da minha rotina diária, mas encarei o caminho mais demorado e difícil. Eu e o Luiz decidimos partir numa jornada de vida para um mundo desconhecido. Nos mudamos para os Estados Unidos na busca da excelência”, frisa Joaquim.
Universidade de Oregon
Em 1981, aos 18 anos, Joaquim Cruz cravou 1min44s03 no Troféu Brasil, no Rio de Janeiro, e estabeleceu um novo recorde mundial juvenil. A marca elevou o patamar de prestígio do brasiliense no cenário internacional, e Joaquim Cruz foi convidado a estudar, por meio de uma bolsa, na prestigiada Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. Com uma estrutura de ponta para ampará-lo e com Luís Alberto ao seu lado, sua evolução foi rápida.
Na verdade, Luiz Alberto e Joaquim não estavam sozinhos nos Estados Unidos. Na América, juntaram-se à dupla em Oregon outros dois corredores de destaque do Brasil: Zequinha Barbosa e Agberto Guimarães.
Era um trio de muito talento. Agberto, por exemplo, foi quarto colocado nos 800m nos Jogos Olímpicos Moscou 1980 e bicampeão Pan-americano (800m e 1.500m) em Caracas 1983, entre outros resultados.
Zequinha, por sua vez, foi quarto colocado nos Jogos Olímpicos Barcelona 1992 e sexto nos Jogos Olímpicos Seul 1988 nos 800m e brilhou com a prata no Mundial Tóquio 1991 e o bronze no Mundial Roma 1987. Além disso, foi ouro no Mundial indoor Indianápolis 1987 e a prata no Mundial indoor Budapeste 1989, tendo conquistado ainda o ouro no Jogos Pan-americanos Mar del Plata 1995 e a prata no Pan Caracas 1983, sempre na mesma prova que consagrou Joaquim Cruz.
“O Joaquim tem uma coisa muito boa que é a humildade dele. É algo que transcende todas suas conquistas. Apesar de ser campeão olímpico, ele sempre teve os pés no chão, não perdeu essa essência. É um cara de um coração enorme, um parceiro, um amigo, um irmão, que soube estar comigo nas horas difíceis e boas. Tenho uma admiração enorme por ele como ser humano, porque esse lado é maior do que a medalha de ouro dele. Ele reproduz o brilho da medalha e isso é o mais legal de tudo”, diz Zequinha Barbosa.
Um ano antes dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, Joaquim Cruz disputou a conferência universitária do lado oeste dos Estados Unidos. Além de vencer os 800m, quebrou o recorde da prova. A façanha foi um aperitivo para o que estava por vir, tanto no cenário universitário norte-americano quanto, principalmente, nas Olimpíadas.
“Em 1984, o Campeonato Nacional Universitário foi disputado na cidade de Eugene (no estado de Oregon), praticamente na nossa casa. A nossa equipe estava forte e aquele foi um ano em que tudo deu certo. Como eu estava me preparando para os Jogos Olímpicos, ter um campeonato em casa era quase um evento-teste. Até porque, no calendário, eu tinha a semifinal dos 800 metros no primeiro dia, no outro dia a semifinal dos 1.500 metros, no terceiro dia a final dos 800 metros e, no quarto dia seguido, a final dos 1.500 metros. E isso era o que eu iria viver nas Olimpíadas de Los Angeles nos 800 metros. Nessa prova, a disputa seria feita em quatro dias seguidos. Então falei: vamos encarar isso aí porque vai ser esse tipo de rotina que vou viver durante os Jogos’”, narra Joaquim.
O sucesso naquela empreitada foi enorme.
“No Campeonato Universitário, eu venci a semifinal dos 800 metros, a semifinal dos 1.500 metros, a final dos 800 metros e a final dos 1.500 metros. Foi um feito que, até então, só um outro atleta dos Estados Unidos tinha conseguido, que era ter vencido tanto os 800 metros quanto os 1.500 metros no mesmo campeonato”, ressalta Joaquim.
“A tensão e a pressão de competir bem em casa foram aliviadas. A cidade de Eugene tem uma tradição longa no atletismo. E o estádio estava lotado quando ganhei os 1.500 metros, para delírio da torcida”, continua.
Amparado pelo bronze no Mundial de Atletismo de Helsinque e pelas lições que havia aprendido na Finlândia, Joaquim Cruz estava com sua confiança em patamares muito elevados quando aterrissou na Califórnia para disputar os Jogos Olímpicos em 1984.
“Eu cheguei a Los Angeles uma semana antes dos Jogos começarem. Fiz alguns treinamentos e teve um treinamento-chave. O último que fiz antes de começar a competição me deu uma indicação de que eu estava realmente preparado. Se o ritmo da prova fosse fraco, eu estaria bem de velocidade. Se fosse forte, eu estaria forte também”, conta Joaquim.
“Eu fiz um treinamento de 600 metros e um de 400 metros. Fiz a minha melhor marca nos 600 metros naquele dia, descansei dois minutos, e fiz uma marca nos 400 metros que até hoje eu acho que o Luís Alberto me falou o tempo errado para me fazer crescer ali na hora”, prossegue o campeão.
“Eu fiz 1min14s nos 600 metros e saí com o ácido lático até no fio do cabelo. Depois, era para eu descansar quatro minutos e fazer um tiro de 400 metros. Mas quanto mais eu esperava, mais o ácido lático aumentava. Então, depois de dois minutos, eu decidi sair. Fiz os 400 metros e terminei achando que tinha corrido em 55 ou 56 segundos. E ele falou 52. Até me arrepiei na hora. Saí da pista super confiante e falei para mim que agora bastava trabalhar a minha parte mental”.
De olho em Sebastian Coe
Joaquim Cruz buscava não desviar a atenção e mantinha a cabeça baixa, olhando para a pista da raia número 6 onde se encontrava, quando ouviu o anúncio ao microfone. O maior momento de sua vida como atleta estava prestes a começar.
“Falaram em suas marcas e, na minha mente, eu pensei agora é comigo’’.
Em todo Brasil, milhões de pessoas viviam uma expectativa tremenda e torciam por aquele jovem esguio de pernas longas, confiante de que algo extraordinário pudesse acontecer no Memorial Coliseum.
Joaquim tinha dois rivais incrivelmente fortes naquela pista. Um deles, na raia 3, era o britânico Sebastian Coe, atual recordista mundial, que quatro anos antes havia faturado a medalha de prata nos Jogos Olímpicos Moscou 1980. Outro oponente de peso era o também britânico Steve Ovett, atual campeão olímpico dos 800m e responsável pela derrota de Coe em Moscou.
“Eu tinha vários rivais. O Ovett, campeão em Moscou, os dois americanos, o Earl Jones, de 19 anos, era dois anos mais novo do que eu e estava correndo muito bem, e o Johnny Gray, que participara de algumas provas comigo na Europa e que também estava correndo em casa. E tinha os quenianos, além do recordista mundial, Sebastian Coe, que queria ganhar o ouro nos 800 metros depois de ter perdido para Ovett em 1980. Ele vinha com tudo para ganhar o ouro em 1984”, detalha Joaquim.
Particularmente, o maior perigo vinha de Coe. “Eu conhecia o estilo de corrida dele. Ele era um atleta forte, muito veloz. Eu tinha que ter cuidado para não cometer o erro que ele cometeu em 1980 e sair na hora errada. Tive que correr a prova toda olhando para trás e marcando ele o tempo todo”, prossegue.
Apesar disso, Joaquim, segundos antes da largada, buscava não pensar em seus rivais.
“O meu foco estava mais em como é que eu iria executar o combinado. Me lembro que depois da largada, nos primeiros 130 metros, eu tive um momento de dúvida se arrancava ou não, mas decidi continuar no meu ritmo, como planejado e depois fui para frente”, continua.
“Nos primeiros 200 metros aconteceu uma coisa fora do comum. Eu estava brigando não pela liderança, pois os primeiros 200 metros, nos 800, é mais de uma briga para ver quem consegue a melhor posição durante a prova. Às vezes, o atleta tem que brigar um pouquinho ali. Tem que sair um pouquinho mais forte e determinar logo no começo a posição. O queniano já estava na minha frente e eu queria ficar logo atrás dele”, conta Joaquim, referindo-se ao queniano Edwin Koech.
“O americano encostou e me deixou encurralado. E tive que frear, sair para o lado e, ao fazer aquilo, eu peguei a melhor posição durante a prova. Eu só tive que usar o queniano para me levar pelos primeiros 400 metros, 600 metros. Eu o usei como coelho”, prossegue Joaquim.
No atletismo, o coelho é o corredor que se posiciona, no início da prova, à frente dos rivais e, com isso, dita o ritmo da prova.
“Agora eu vou”
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“Durante a corrida, foquei em alguns pontos importantes. Nos primeiros 200 metros, eu tinha que brigar por uma posição ideal para evitar um possível caixote (ficar embolado com outros atletas). Depois que consegui essa posição deu um branco. Na minha cabeça, eu pensava que tinha que vigiar o Sebastian Coe. Então, fiquei o vigiando dos 200 metros até os últimos 300 metros. Eu fiquei vigiando o Sebastian Coe o tempo todo. Se você assistir à prova, vai perceber que a cada cinco passadas eu dava uma olhada”.
Joaquim Cruz manteve sua estratégia de manter-se atrás de Edwin Koech pelos 600 metros iniciais. Então, ele começou a girar a chave.
“Na altura dos últimos 300 metros, no final da curva, foi onde eu treinei o meu corpo e a minha mente para colocar uma segunda marcha. Normalmente, a maioria dos atletas, eu diria que 95% dos atletas de meio-fundo, começam a puxar nos últimos 500 metros. Mas, realmente, começam a puxar mesmo, a dar o kick, nos últimos 250 metros. Como eu tenho a passada muito longa treinei meu corpo para sair um pouco mais cedo, nos últimos 300 metros. Se você assistir dez provas minhas, vai perceber que na altura dos 300 metros finais eu abaixo a cabeça e começo a acelerar um pouco mais. Mas ali, naquele local, nos Jogos Olímpicos, eu tive que falar para mim mesmo para segurar, ter paciência”, prossegue.
“Fiquei segurando. Mas o ritmo já aumentava automaticamente, porque o queniano estava puxando a prova. Eu dei uma olhadinha para o lado, senti que o americano estava vindo, faltando uns 280 metros. Eu dei outra olhada nos últimos 200 metros para o lado e não vi ninguém. Eu ainda estava em segundo. Então, nos últimos 80 metros, falei para mim mesmo: agora eu vou!’”.
“Quando eu falei agora eu vou, eu me arrepiei todo. Eu dei uma olhada para frente, para onde ficava a arquibancada, e eu já não via mais ninguém. Era como se o povo todo tivesse se derramado na pista. E as raias... Eu não percebi detalhes nas raias. Eu só via uma linha toda. Eu me arrepiei e dei o kick final”.
Na voz de Osmar Santos
Quando o cronômetro marcou um minuto e cinco segundos de prova, a tensão e a expectativa eram enormes, principalmente no Brasil. Àquela altura, os milhões de compatriotas de Joaquim Cruz que tiveram o prazer de assistir à disputa ao vivo pela televisão ouviam a voz de Osmar Santos embalar as passadas firmes do brasileiro, que seguia atrás de Edwin Koech. No momento em que Joaquim disparou, Osmar Santos também elevou o tom de sua narração.
“Vamos para a definição! Capricha garoto! Passadas elegantes de Joaquim Cruz, passadas de esperança de Joaquim Cruz, daquele que é considerado o maior corredor brasileiro de todos os tempos. Capricha garoto! Dá-lhe Joaquim! Vai assumindo a liderança o brasileiro. Vai tentar chegar em primeiro. Vai tentar conquistar a medalha de ouro. Uma prova difícil para o brasileiro. Acompanhe, Brasil...”
O cronômetro marcava um minuto e trinta de prova quando Osmar Santos, enfim, narrou o momento pelo qual um país inteiro esperava.
“Passa à frente, Joaquim Cruz! Perto da medalha de ouro! Olha a emoção que toma conta do Coliseu por parte do Brasil. Vamos ouvir o hino nacional! Vamos ver a bandeira brasileira...”
Então, exatos um minuto e quarenta e três segundos após a largada, a voz de Osmar Santos finalmente anunciou: “Medalha de ouro para o Brasil...”
Ali, profecia de Joaquim Cruz tornou-se real. Ele havia, de fato, feito algo maior do que sua própria vida. Agora, ele era um campeão olímpico. O ouro veio acompanhado de outra glória: a quebra do recorde olímpico da prova.
“Quando atravessei a linha de chegada, agradeci a Deus. A próxima coisa para fazer era pegar a minha bandeira que estava com o síndico do meu apartamento lá na curva, na saída dos 1.500 metros. Eu decidi dividir aquele momento com o povo brasileiro. Foi mais para identificar o meu país, né? Aquilo foi uma forma de identificação e de dividir aquele momento com o povo brasileiro. Carregar a bandeira do Brasil foi uma forma de comemorar com o povo brasileiro”, relembra Joaquim.
“O esporte representa uma vida pré-planejada pela natureza. Coube a mim ser sensível aos sinais que a natureza me transmitiu para escolher e permanecer no caminho correto”, ensina.
Passadas que inspiraram uma nação
A prova dos 800 metros em Los Angeles marcou um momento único da história olímpica do Brasil em vários sentidos. Com o triunfo, Joaquim Cruz, além de campeão e recordista olímpico, tornou-se o primeiro atleta do país a vencer uma disputa de pista nos Jogos Olímpicos. E hoje, mais de 36 anos depois, permanece o único a ter protagonizado tal façanha.
Outro ponto determinante daquele 6 de agosto de 1984 se deve ao fato de as passadas de Joaquim Cruz terem inspirado uma geração de atletas brasileiros, não apenas do atletismo. Afinal, a vitória em Los Angeles representou a primeira vez que o Brasil assistiu, ao vivo, a um de seus representantes sagrar-se campeão olímpico.
Ao assistirem aquele jovem de 21 anos correndo pela pista com a bandeira do Brasil e, depois, sendo laureado com a medalha de ouro ao som do Hino Nacional, milhares de atletas passaram a acreditar ainda mais que o sonho era possível.
“Eu sempre falo que o Joaquim acabou se tornando um dos grandes ídolos que tive. Foi a primeira vez que pude ver um atleta brasileiro conquistando uma medalha de ouro, embora não fosse na minha modalidade, e, depois, dando aquela volta olímpica na pista. Aqueles Jogos de Los Angeles foram fundamentais para minha formação”, conta Rogério Sampaio, que, oito anos depois do triunfo de Joaquim Cruz, conquistou a medalha de ouro no judô nos Jogos Olímpicos Barcelona 1992.
Quem também tem Joaquim Cruz como uma de suas referências é Vanderlei Cordeiro de Lima.
“Eu não tinha televisão em casa. Vi aquela prova quase um ano depois. Me lembro que eu estava na casa de um amigo e vi aquela imagem, que passou em um programa esportivo, do Joaquim dando a volta olímpica. Aquela imagem, mesmo um ano depois, foi determinante para que eu pudesse construir a busca desse sonho de um dia me tornar um atleta olímpico. Então, me influenciou muito”, recorda o ex-maratonista.
Medalha de bronze nos Jogos Olímpicos Atenas 2004, Vanderlei é único o único atleta latino-americano outorgado com a Medalha Pierre de Coubertin, a maior condecoração de cunho humanitário-esportivo concedida pelo Comitê Olímpico Internacional. Ele também teve a honra de ter acendido a Pira Olímpica na abertura dos Jogos Rio 2016.
Horas de um longo dia
Ao cruzar a linha de chegada em primeiro lugar na pista de corrida do Los Angeles Memorial Coliseum, Joaquim Cruz se desfez de uma carga emocional gigantesca para um jovem de 21 anos que disputava pela primeira vez os Jogos Olímpicos.
O Brasil inteiro havia corrido com ele naquele um minuto e quarenta e três segundos e, agora, comemoravam com orgulho o feito do menino de Taguatinga, amigo do Wandeco e que havia sido lapidado com o carinho de um pai por Luís Alberto.
“Esse garoto magrelo, comprido e cheio de vontade foi a maior surpresa que apareceu na minha vida”, diz, emocionado, Luiz Alberto, que hoje, aos 70 anos, vive e trabalhar no Catar.
“Eu me impressionei com o Joaquim assim que o vi pela primeira vez, pela dedicação, pela vontade e pela fome dele. Era uma pessoa simples, muito dedicada. Ele é talentoso, esforçado, lutador e merecedor de tudo o que conseguiu. Que Deus o proteja sempre”, continua o técnico, como se, à distância, abençoasse Joaquim Cruz.
O que ninguém tinha acompanhado, contudo, foram as intermináveis horas que antecederam, 6 de agosto, a caminhada que levou Joaquim Cruz ao estrelato olímpico.
“Eu acordei cedo, umas 7h, mas fiquei na cama até as 8h. Depois, levantei, tomei banho e fui tomar café”, recorda Joaquim. “Após o café, o Luís Alberto me chamou para caminhar. Quando você está nervoso e só tem a final da Olimpíada pela frente, você quer reservar o máximo de energia possível. Então, aquela foi a caminhada mais longa e cansativa da minha vida. Eu lembro que se estivesse andando e alguém fizesse bú para mim, eu cairia. Eu estava muito frágil. Foi uma viagem demorada, mas rápida ao mesmo tempo”, prossegue.
“Eu voltei para a Vila (Olímpica) e continuei fazendo o que estava fazendo todos os dias. Os quartos tinham uma sala de estar e eu peguei um travesseiro, o coloquei em cima da mesinha e fiquei ali, deixando aquela sensação tomar posse do meu corpo. Fiquei cozinhando a mente, né? E controlando aquele sentimento durante um período. Fiquei uma hora ou uma hora e meia ali, deitado. Depois, desci para tentar comer alguma coisinha para o almoço, mas nem comi muito. Voltei, peguei minhas coisas e me encontrei com o Luís na parada de ônibus (no lugar onde o ônibus que levava os atletas para o Estádio Olímpico parava), pois a gente já tinha combinado onde iríamos nos encontrar”.
A viagem até o Los Angeles Memorial Coliseum foi diferente de todas as outras até ali.
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“No ônibus, eu normalmente colocava a cabeça na poltrona da frente e tirava um soninho sem me deixar dormir profundamente. E uma coisa de anormal que aconteceu foi que o ônibus não se movia. Pegamos um congestionamento brabo mesmo. Me lembro que olhei para o lado, para o Luís Alberto, e ele estava super tenso e nervoso. O ônibus não se movia e a gente tinha que chegar. Eu até evitava olhar para não ficar nervoso também e até flertei com a ideia de o ônibus não chegar antes da hora da competição. Mas não consegui alimentar aquele pensamento negativo. Estava tão confiante que a minha natureza não permitiu que fizesse aquilo”, detalha Joaquim Cruz.
“Conseguimos chegar a tempo para o aquecimento e, normalmente, eu me deitava na pista antes do aquecimento durante uma hora e fazia minha concentração. Mas dessa vez não deu. O bom foi que eu estava fazendo o aquecimento na Universidade do Sul da Califórnia, a USC (University of Southern California), que fica perto da UCLA (University of California, Los Angeles). E ninguém estava usando aquela pista. Então foi praticamente como se estivesse no meu mundo, solitário, e deu para fazer bem meu aquecimento”, revela.
Depois disso, veio o bom e velho ritual de preparação.
“Coloquei a sapatilha, fiquei trotando ali, e, naquele local, o Luís Alberto não podia entrar. Ele não tinha credencial, só os atletas. Mas ele tinha acesso a uma parte do local que ele conseguiu chegar perto. Mas tinha uma grade. Na hora de entrar na pista, fui lá conversar. Ele perguntou como eu estava e falei: beleza! Conversamos novamente sobre a tática. Existiam duas a serem executadas. Nós nos despedimos, entrei na pista e parece que foi tudo combinado. Era como se já estivesse escrito”, narra.
“Quando entrei na pista e tive contato com o povo, me arrepiei todo. Evitei olhar para cima para não ter contato com os torcedores, porque o público, às vezes, pode ser intimidador e na maior parte do tempo é. Caminhamos uns 100 metros até a linha de largada. O difícil era controlar as emoções e consegui fazer isso. Eu senti que a minha mente estava tranquila, no controle da situação”.
Com a mente tranquila, Joaquim Cruz conseguiu executar a tática planejada e conquistou o primeiro e único ouro em provas de pista do atletismo brasileiro.
Seul 1988 e porta-bandeira em Barcelona 1992
Quatro anos depois, foi justamente a mente que traiu Joaquim Cruz na final dos 800m em Seul. A preparação para os Jogos fora difícil. Joaquim enfrentou duas cirurgias em 1986 (uma no joelho e a primeira de seis nos tendões-de-Aquiles que faria durante a carreira), não conseguiu disputar o Mundial Roma 1987 e viu outros corredores em melhor forma, entre eles Zequinha Barbosa. Em 1988 as recompensas pelo esforço e sacrifício começaram a chegar. Venceu três torneios (Abbotsford, Canadá; Grosseto, Itália e Berna, Suíça) e ficou em segundo em Colônia, na Alemanha, atrás apenas do marroquino Said Aouita, recordista e dominador dos 5.000m, que estava ganhando dos nomes mais fortes dos 800m e dos 1.500m.
“Fiz uma temporada razoavelmente boa e cheguei em Seul confiante. A corrida final foi muito bagunçada. Tive de dividir a minha tática com o Zequinha e ao mesmo tempo ter a minha própria tática. Acabou que em nenhum momento consegui entrar no meu ritmo, fazer uma corrida bem executada e que fluísse bem. Tentava ir para frente, proteger minha posição, mas estava difícil e só consegui entrar na prova mesmo no finalzinho. Na reta, faltando pouco mais de 100 metros, abri uns dois metros para o segundo colocado, olhei o telão e pensei: 'vou ganhar'. Aquele pensamento foi destrutivo. Distração é destrutivo. Fui ultrapassado. O atleta que quer vencer numa edição olímpica não pode ter esse tipo de pensamento. Acabou a prova e de repente tive a sensação de que gostaria de correr de novo. Gostaria que fosse a semifinal para ter uma segunda chance. Foi mais difícil ganhar a prata do que o ouro quatro anos antes. Tenho muito orgulho do meu esforço para conseguir essa conquista.
Joaquim fez a prova em 1min43s90, sua melhor marca do ano, sendo superado no final pelo queniano Paul Ereng, que marcou 1min43s45. Os dois especialistas deixaram Auoita em terceiro, com 1min44s06.
Ao se machucar e não ter como competir em Barcelona, em 1992, Joaquim prometeu a si mesmo e ao amigo Agberto Guimarães que estaria em Atlanta, para realizar o sonho de disputar três Jogos Olímpicos. E também se divertir um pouco. Permitiu-se assistir a outros esportes, aproveitou mais a Vila e pela primeira vez iria desfilar. Só não fazia ideia que seria o porta-bandeira da delegação. Nos Jogos que marcariam o adeus de alguns dos maiores ídolos do esporte brasileiro, como Oscar, Paula, Hortência, Carlão, Ida, Ana Moser, além de Robson Caetano e Zequinha Barbosa, coube ao magrelo de Taguatinga a tarefa de carregar o Pavilhão Nacional no Estádio Olímpico.
“Treinei, me preparei, obtive o índice e realizaria o sonho, mas sabia que não seria muito competitivo. Nas duas primeiras edições não participei do desfile, pois a prova dos 800 era dois dias depois, e eu precisava treinar. Para Los Angeles e Seul fui com medalha na mente, nem pensei em participar do desfile. Em Atlanta, eu já tinha decidido que participaria e veio o convite para ser porta-bandeira. Foi a segunda maior honra que tive na minha vida de atleta. Entrei na pista como um vencedor, desfilando, exibindo a bandeira brasileira. Foi uma forma de mostrar minha identidade, minhas raízes mais profundas, onde tudo começou. Tive o maior orgulho de ser brasileiro naquele momento.
Em Atlanta, Joaquim correu os 1.500m em vez dos 800m, prova na qual ganhou ouro e prata, mas não conseguiu fazer o índice para os Jogos de 1996. Sua participação parou na segunda bateria, mas, depois de alguns momentos de tristeza por não ter chegado às finais, Joaquim pensou no conjunto de sua obra:
“Jamais vou me sentir como um perdedor. Tive uma grande carreira e isso ninguém vai me tirar”, disse logo após a prova, sentado num banco, enquanto vários jovens atletas o reverenciavam, como descreveu o jornal O Globo de 30 de julho de 1996.
Os sinais
Joaquim Cruz, que completou em 2021 58 anos, vive nos Estados Unidos e atualmente trabalha como técnico da equipe norte-americana paraolímpica de atletismo.
Mais de trinta e seis anos se passaram desde a conquista do ouro em Los Angeles. E ao relembrar com tantos detalhes aquela prova mágica, o menino de Taguatinga deixa um recado a quem, como ele, hoje sonha realizar algo fantástico.
“Preste atenção nos sinais que a natureza lhe envia. Sonhe e sonhe longe ou alto. Se você deseja ser diferente e único, tem que pensar, sonhar, se comportar fora de sua zona de conforto e do seu mundo simples. Tenha fé e coragem quando decidir explorar o seu mundo desconhecido. Você terá que atravessar o oceano antes de realizar os seus sonhos”.