Casal de remadores gaúchos busca se reconstruir através do esporte após ano de dor e solidariedade
Atualmente competindo no Brasileiro de Remo Costal, Evelen e Piedro ajudaram desabrigados nas enchentes no estado e lidaram com perda de amigos em acidente automobilístico
Remadores gaúchos Pietro Xavier e Evelen Cardoso. Foto: Daniel Varsano/COB
O ano de 2024 ficará eternamente marcado para o povo do Rio Grande do Sul. As enchentes que assolaram o estado entre abril e maio causaram centenas de mortes e deixaram inúmeras famílias desabrigadas. A catástrofe, por outro lado, despertou uma onda de solidariedade em todo o país, que mobilizou um grande número de pessoas dispostas a ajudar no que fosse necessário. Nesta rede de apoio, o esporte brasileiro teve papel fundamental. Foram muitos os atletas que mudaram suas rotinas para salvar vidas. Entre aqueles que abdicaram de tudo está o casal de remadores Evelen da Silva Cardoso e Piedro Xavier Tuchtenhagen, que atualmente defendem o clube de Porto Alegre, Grêmio Naútico União, no Campeonato Brasileiro de Remo Costal, em Florianópolis (SC).
“A gente tem que se reconstruir a cada dia, pois a vida é uma só. Adversidades sempre vão existir, mas essas situações trazem mais força. Antes de pensarmos na gente, temos que pensar no outro. O esporte não é só competir. É, além disso, mudar a sociedade, fazer a transformação, agregar o mundo. Ser solidário com o próximo. O gaúcho é um povo unido nas causas que abraça e está sempre lutando”, declarou Piedro, que detalhou o momento em que decidiu abrir mão da disputa da seletiva olímpica de Paris 2024 junto com seu companheiro Evaldo Becker.
“A situação só piorava e começou a chegar ver cada vez mais de perto da gente. O Evaldo morava em uma área de risco. Ele, com uma filha pequena, precisou ir para o alojamento do Grêmio Náutico União. A gente sentia a dor das pessoas e não nos víamos fora dali. Eram nossos amigos, nosso povo. Imagina deixar uma filha pequena numa situação destas? Era um sonho, mas haverá outras oportunidades. Então conversamos bem e chegamos numa decisão conjunta. Era um dever nosso, foi algo que aprendi desde que comecei no esporte. Foi doloroso, mas são escolhas”, afirmou o remador de 23 anos.
As fortes chuvas que causaram a maior enchente da história do Rio Grande do Sul alteraram a vida do casal. Os dois já haviam tido problemas com alagamentos no fim de 2023, quando tiveram que abandonar a casa onde moravam na região das Ilhas, em Porto Alegre. Assim como outros atletas de remo do estado, os dois se mobilizaram para tentar minimizar o sofrimento das pessoas atingidas. Piedro pegou seu barco e saiu em busca de sobreviventes. Já Evelen atuou como voluntária em um abrigo montado na sede do Grêmio Náutico, que também teve sua estrutura abalada pelas chuvas.
“Foi um momento bem difícil e preocupante, mas graças a Deus as coisas estão se acertando. Não tenho nem palavras para descrever tudo que passamos. A gente ajudava sem olhar quem era. Foi muito legal essa nossa mobilização. A gente deixou de treinar para ajudar quem não tinha casa e comida. Foi uma atitude muito nobre da gente”, descreveu Evelen.
Ainda com as feridas longe de cicatrizadas, alguns meses depois, outro baque forte. Logo após a primeira competição pós-enchentes, o Brasileiro Absoluto, em São Paulo, um trágico acidente vitimou sete atletas e o treinador da equipe do Remar para o Futuro, projeto social de Pelotas (RS), de onde o casal surgiu para o esporte.
“Eu tive a oportunidade de remar com as três meninas que infelizmente faleceram. Tive essa despedida com elas. Foi uma experiência única. Tenho essa última memória delas. É muito triste estar aqui sem elas. A gente era uma família, falta um pedaço”, disse, emocionada, Evelen.
Além do remo, o projeto social de Pelotas une o casal Evelen e Piedro. Outro elo é o criador do Remar para o Futuro, Oguener Tissot, que aos 43 anos, também foi uma das vítimas do acidente entre um caminhão e uma van que levava integrantes do time. A inesperada perda do primeiro treinador despertou no casal o desejo de manter o legado de Oguener sempre aceso.
“Falando em reconstrução, eu, sinceramente, estava pensando em parar de remar e arrumar uma outra ocupação. Isso acontece e desestabiliza um pouco. Mas, eu e o Piedro decidimos voltar para Pelotas para continuar no projeto, dar apoio a esses jovens e passar um pouquinho do que o Oguener nos ensinou. Essa volta está sendo muito importante para gente, é um propósito de vida continuar o seu legado e ajudar a todos”, revelou Evelen.
Hoje, os dois estão em Florianópolis (SC) competindo no Campeonato Brasileiro de Remo Costal junto com seus companheiros de clube e de outros atletas gaúchos. Todos marcados para sempre. Mais fortes e unidos, buscando se reconstruírem fazendo o que mais amam e representando aqueles que se foram, mas que seguem vivos em suas memórias.
Além do Grêmio Náutico União (GNU), com 12 atletas, o estado do Rio Grande do Sul está presente no Brasileiro de Remo Costal com equipe do Team Beach Sprint, formado por atletas masters de 40 e 50 anos.
"O espírito da equipe está muito mais forte. A gente trabalhou junto ajudando, resgatando as pessoas, distribuindo alimentos. Usamos nossos barcos. Tantos remadores quanto treinadores ajudaram muito e a gente se uniu. Apesar da tragédia, foi um movimento muito bonito que fizemos", comentou Marcelus Marsili, coordenador-técnico de remo do GNU e atleta olímpico em Atlanta 1996.
Werner Hoher, presidente da Federação de Remo do Rio Grande do Sul, que completou 130 anos em 2024, estima prejuízos em torno de R$ 10 milhões para o remo gaúcho em danos materiais causados pelas enchentes. Ele também foi um dos que pegou seu barco e saiu para buscar sobreviventes.
“Com as enchentes que passamos, paramos de praticar o esporte. Fomos às ruas em salvamento e, além disso, fomos marcados pelo acidente de Pelotas. Esse campeonato mostra o quanto a gente pode se reinventar e pensar numa perspectiva para o futuro para darmos a volta por cima. Que esse novo ciclo olímpico possa trazer boas perspectivas com essa nova modalidade que se inicia”, projetou Werner Hoher, que exaltou a mobilização da comunidade do remo para salvar vidas. “Nós, remadores, por entendermos das águas do Guaíba, ajudamos muita gente. Todos os clubes deram as mãos em nome de algo maior, que era salvar vidas e ajudar a comunidade como um todo. Todos enfrentaram essa enchente como uma competição”, concluiu.